Saímos do encontro do Rancho Móvel e fomos conhecer (há uma quadra) esta linda construção que indicava ser uma livraria.
Que maravilhosa surpresa!
Como bem descreve Rosane Tremea no seu, não menos emocionante relato, “Não foi investimento público que ergueu a construção de 2 mil metros quadrados. Foi um sonho que a tornou realidade, o maravilhoso delírio de uma professora aposentada. Nascida e criada nos campos de São Francisco, Luciana Olga Soares, uma mulher de mais de 60 anos, circula pelas prateleiras como qualquer outro dos funcionários, todos esbanjando simpatia e atenção.”
Encantados com tudo o que víamos fomos conversar com a Luciana… que aula maravilhosa!
O texto abaixo resume um pouco do que ouvimos e sentimos e, infelizmente, não anotamos nem gravamos na hora:
“Uma livraria de sonho
Fernanda Zaffari (clicando no nome lerás o original)
No meio dos Campos de Cima da Serra tem uma livraria. E que livraria.
Desde março, a avenida central de São Francisco de Paula ganhou uma livraria que representa muito mais do que uma loja para uma cidade de pouco mais de 20 mil habitantes. O prédio tornou-se atração turística, galeria de exposições, salão de eventos e centro cultural. No futuro, ainda será mais. Há uma casa de chá para ser aberta e um projeto de cinema e teatro para o terreno ao lado. Tudo obra de uma só pessoa: Luciana Olga Soares, 63 anos.
A pergunta é: o que passa pela cabeça de uma professora aposentada de História para fazer tamanho investimento (são 2 mil metros quadrados) com remotas chances de um retorno financeiro à altura?
- Fazer história.
Sonha com o futuro a nova empreendedora cultural do interior do Rio Grande do Sul. Luciana idealizou o projeto e bancou-o sozinha. Herdeira de grandes pecuaristas, não é casada e não tem filhos. Desde que se aposentou (era professora em Porto Alegre, onde nasceu, e também em São Chico), abriu uma pequena livraria. O gosto pela leitura foi também herança do pai, dono de uma biblioteca de 500 volumes.
- Um dia me dei conta de que ou a gente crescia ou a gente fechava. Afinal, a Cultura (grupo nacional de livrarias) está aí.
Na cidade, a 112 quilômetros de Porto Alegre, ela optou pela expansão, fazendo sua própria Cultura, seu Multipalco. Há quatro anos, comprou o terreno e rabiscou o projeto, inicialmente pensado para ocupar 400 metros quadrados. Durante a construção, a parede poderia estar pronta, mas, se não fosse do agrado de Luciana, ia tudo abaixo.
Há de tudo nas prateleiras, inclusive os escritores russos, sua preferência. A sessão de Bíblias ocupa quatro estantes com exemplares em todas as línguas, até tupi-guarani.
- São Chico já foi um lugar de luxo, famílias que tinham dinheiro imitavam a aristocracia rural européia. Havia saraus e concertos - relembra Luciana. - Isso deixou um rastro. Eu poderia estar viajando pelo mundo. Mas para quê? Para chegar em qualquer lugar e ver uma pessoa tomando Coca-Cola?
Personalidade original, longe de qualquer padrão, muito menos o da aristocracia rural gaúcha, Luciana não é de compreensão imediata. O que a torna ainda mais especial. Na cidade, ela sabe e brinca a respeito, chegam a chamá-la de louca devido à livraria e sua dedicação aos animais. Luciana não come carne, por isso ainda não abriu a casa de chá. Quer um fornecedor que só venda comidas saudáveis. Mora na casa da fazenda, a 18 quilômetros do centro, com os 23 cachorros vira-latas que recolheu das ruas. Não tem rádio e não tem televisão. Inclusive, ressente-se da invenção:
- Éramos muito mais felizes sem. Quando meus pais eram vivos, líamos, dançávamos, brincávamos e conversávamos. Fiquei traumatizada com a chegada da TV.
A preocupação é tamanha com os animais que a seção infantil da livraria não vende obras nas quais eles sejam retratados presos. Luciana já arrendou grande parte do campo da família e estuda um projeto para o que restou. Não quer mais criar gado. A jaqueta de couro que usa é antiga. Não compra mais nada que seja de pele de animal. Na livraria, a água é reaproveitada e parte da energia é solar.
Mais detalhes: os funcionários, todos da comunidade, assim como os trabalhadores que ergueram o prédio, possuem dois uniformes - o diário e o social. A casa tem piso aquecido e banheiros confortáveis. O banheiro das crianças, com pia e vaso para a altura dos pequenos. Há namoradeiras para quem quiser ler, e CDs à venda. No pátio, ela montou uma sala de eventos - réplica do primeiro banco comercial da cidade, decorada com imensas fotos da antiga São Francisco.
Para conhecedores dessas peculiaridades, talvez o nome da livraria não precise justificativa: Livraria Miragem.
Fonte: Zero Hora
MANIFESTO SERRANO (aqui talvez explique a decepção com a lida no campo e a decisão de arrendamento de suas terras...)
Nós, moradores antigos dos Campos de Cima da Serra, município de São Francisco de Paula - RS, sentimos a necessidade de levar a público a atual realidade de nossa região que vivia basicamente da pecuária, usando a prática bicentenária da queima do campo para eliminar a macega seca do final do inverno e, com isso, renovar a pastagem.
O fato desse sistema ser praticado todos os anos fazia com que a palha a ser queimada fosse rala, produzindo um fogo de baixa intensidade, nunca atingindo temperaturas elevadas e, consequentemente, não prejudicando o ecossistema. Da mesma forma, sendo fraco, o fogo se extinguia nas proximidades de lugares úmidos como matos e banhados.
Ressaltamos que a denominação tradicional de “Queima do Campo” não retrata com fidelidade essa prática, pois tínhamos o cuidado de aproveitar o vento para direcionar a labareda no sentido horizontal, evitando danos ao solo e gerando um fogo muito fraco e muito rápido, queimando somente a palha seca e, portanto, sem produzir brasa, razão pela qual será mais apropriada a denominação de uma simples “sapecada do campo”. Essa característica o fazia completamente diferente das queimadas realizadas nas regiões centro-oeste e norte do Brasil.
É importante salientar, também, que a cinza possui um caráter alcalino e, por essa razão, colaborava de maneira efetiva para diminuir a acidez do solo, fazendo com que esse se tornasse mais produtivo.
A afirmação que os fazendeiros derrubaram matas nativas para aumentar o campo não corresponde à realidade, uma vez que a região de Cima da Serra era originariamente campo. Haja vista a pequena camada de terra sobre a rocha* que é característica de solo próprio para gramíneas. Só mais tarde se formaram os capões (florestas de pequena extensão) espalhados por toda a região, formando um mosaico de rara beleza, o que, diga-se de passagem, encantou os portugueses e espanhóis quando aqui chegaram.
Já em 1822, o renomado naturalista francês, Augusto Saint-Hilaire, em viagem ao Rio Grande do Sul, fez referências elogiosas à paisagem serrana e aprovou o método da “sapecada” como melhor forma da renovação do pasto e do combate às ervas daninhas.
Além de eliminar ervas invasoras prejudiciais, nossa “sapecada” favorecia o controle do carrapato, sem contar as gramíneas nativas que necessitam do calor produzido pelo fogo para quebrar a dormência em que se encontram suas sementes a fim de que possam germinar, perpetuando, assim, a própria espécie.
Cumpre lembrar que, no período da “sapecada”, mês de agosto, não há filhotes de animais no campo, porque os ninhos são feitos somente a partir de setembro, início da primavera. Além disso, após essa prática, nunca se encontrou qualquer animal queimado ou asfixiado, razão pela qual ela não ocasionou a extinção de nenhuma espécie animal da região.
O benefício dessa prática anual, tradicionalmente realizada há mais de duzentos anos, ia muito além da renovação da pastagem e do controle das pragas, pois evitava a existência de macegas altas que se tornam extremamente perigosas por poderem ocasionar incêndios de grandes proporções e, como tal, incontroláveis. Como agravante, é sabido que algumas aves, como o Quero-Quero, conhecido como “Sentinela dos Pampas”, não fazem ninho em macegas altas.
Outro dado significativo é que o gás carbônico gerado pela queima da vegetação seca é compensado pela fotossíntese realizada pela macega nova que aponta já nos primeiros dias após a “sapecada”. Soma-se a isso que, comprovadamente, as plantas jovens consomem maior quantidade de dióxido de carbono e liberam mais oxigênio no ambiente, garantindo o ar puro.
A exemplo disso, vale lembrar que, no século passado, pacientes acometidos pela tuberculose vinham, por indicação médica, hospedar-se em hotéis de nossa cidade para usufruírem dos benefícios curativos da boa qualidade do ar serrano.
Cabe esclarecer que os animais não comem a macega no final do inverno porque ela fica completamente seca, também não realizando fotossíntese e, em decorrência disso, sem condições de colaborar para a pureza do ar.
Como os Campos de Cima da Serra são dobrados (cheios de elevações) e excessivamente pedregosos, impossibilitam o uso de maquinário para o corte da macega seca, tornando muito difícil, sem a “sapecada”, a continuidade da pecuária.
Esse contexto gerou a tendência de mudança da atividade econômica, surgindo a monocultura do pínus, a cultura da batata e de hortaliças em geral.
Queremos deixar bem claro que nossa contestação não se dirige aqueles que se dedicam a estes cultivos, mas contra o impasse em que a lei**, inviabilizando a pecuária, prática econômica predominante da região, “embretou” os pecuaristas que, sem saída, foram forçados a vender suas terras e, até mesmo, por questão de sobrevivência, a usar desses novos recursos.
Vejamos as consequências desses cultivos.
O cultivo do Pínus, planta exótica e invasora, tem como consequências:
a) acabar com a belíssima paisagem dos Campos de Cima da Serra, podando de maneira empobrecedora e lamentável o potencial turístico da região;
b) contribuir fortemente para secar nossos mananciais de água;
c) exaurir a terra de seus nutrientes, empobrecendo-a;
d) colaborar para o extermínio da fauna e da flora, uma vez que não produz alimentos para os animais e nem condições para que eles se reproduzam, ao mesmo tempo que, sendo invasora, mata toda e qualquer vegetação nativa a sua volta;
e) favorecer o extermínio de animais também pela utilização de formicidas que são colocados nas mudas no período do plantio.
Acrescenta-se, ao exposto, o perigo inevitável e iminente de incêndios espontâneos de grandes proporções, sem nenhum controle, colocando em risco todo o ecossistema da região e todas as formas de vida, inclusive a humana, sem contar os danos materiais que são inevitáveis. São inúmeros os exemplos dessa calamidade que, nos Estados Unidos, arrasam grandes extensões de terras sem que eles, com toda a tecnologia que possuem, consigam deter a tragédia.
Já a cultura da batata e das hortaliças traz outros prejuízos:
a) com a prática de arar, a pequena camada de terra sobre a rocha, com espessura aproximada de 30 cm, sofre uma grande erosão que é agravada pelas irregularidades do terreno. Isso inviabilizará todo e qualquer aproveitamento posterior do solo;
b) o uso de agrotóxico nas plantações, tantas vezes abusivo, não só provoca o envenenamento de animais, principalmente de aves, peixes e crustáceos, como também polui nossas nascentes, comprometendo a qualidade da água que, de nossa região, situada a 922 m de altitude, é distribuída para todas as cidades circunvizinhas, já que fazemos parte de cinco bacias hidrográficas.
Mas o que nos deixa estupefatos é que sempre ouvimos das autoridades que nos multam pela “sapecada” a afirmação que é “imprescindível proteger a natureza”, sendo esta a razão de todas as leis.
Entretanto, há um silêncio absoluto quanto à destruição do campo. Parece não haver nenhuma lei que o proteja. Os próprios órgãos governamentais regulamentam plantações exóticas e cultivos carregados de agrotóxicos em pleno campo, destruindo-o de maneira profunda.
E fica conosco a pergunta: - Por ventura não fará o campo parte da natureza?!...
No aspecto cultural, vemos a Tradição Gaúcha, que por tanto tempo representou tão dignamente a alma do povo do Rio Grande, ser enfraquecida pela proibição da “sapecada” que impõe ao ruralista, além de problemas financeiros, o dissabor de se ver abordado por funcionários, no mais das vezes despreparados, usando de abuso de autoridade, pois chegam em nossas propriedades fortemente armados como se fôssemos criminosos.
E a triste realidade permanece doída diante de nossos olhos: os lendários Campos de Cima da Serra estão, lamentavelmente, desaparecendo como paisagem e como ecossistema.
E nós, que amamos esta terra, tememos pela herança que ficará para nossos filhos, pois não compreendemos um viver sem tradição, não compreendemos um viver sem valores verdadeiros que brotem de um trabalho feito em harmonia com a natureza e que contribua para o bem comum.
GRUPO SERRANO
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Moradores dos Campos de Cima da Serra
São Francisco de Paula de Cima da Serra, 20 de setembro de 2012.
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* Aproximadamente 30 cm
**Lei Estadual nº 9.519/92
Nota: Esse Manifesto representa o conhecimento empírico de diversas gerações que viveram nos Campos de Cima da Serra. Hoje, trabalhos científicos de renomados pesquisadores como Arlindo Butzke, Roberto Birch Gonçalves e Alice MariaTrindade Ramos, entre tantos outros, vêm documentar a veracidade dessas informações.
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